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segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

No meu sofá



Olá Solidão, você por aqui de novo? Esqueceu alguma coisa?

Ah, desculpa. Não percebi que você nem mesmo foi embora. Desculpa. Eu até tinha arrumado suas malas para você finalmente ir, cheia de esperança que dessa vez você ia parar de abusar da minha hospitalidade. Mas errei, não foi? Como sempre. Sempre mesmo.

Você estava era esticada no meu sofá, com as pernas pro alto, sem a menor vontade de ir embora. Nem notei, estava ocupada me iludindo por ali. Mas tudo bem, vou dar de ombros. Pode continuar a ocupar meu sofá. Eu já aprendi que não vou conseguir te tirar daí.

Ô, Solidão, querida, não é que eu te odeie. Quer dizer, pelo menos não o tempo todo. Mas é que você já está aqui há tempo demais, tanto tempo que não lembro de um único momento em que você não estivesse do meu lado. Agradeço seu companheirismo, mas é que... tem tanta gente por aí que merece sua presença também! Aliás, às vezes consigo achar que eu nem mereço. Deixa eu saber como é a vida sem você. Se for pior do que é hoje, eu volto, meu bem. Juro que volto. Mas deixa eu me machucar, deixa. Deixa eu errar, deixa eu aprender que você é que é segura.


Gap - The Kooks

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Ícaro


Ícaro morreu.

E todos vivem, até hoje, criticando o coitado do Ícaro: “Quanta ignorância, Ícaro, justo você, que sabia que suas asas eram de cera, foi voar onde não devia! Sinceramente, não esperávamos isso de você.”

Se Ícaro ainda estivesse vivo, jogaria uma serra elétrica ligada neles: “Vocês são uns jumentos! Não sabem do que estão falando. Eu voei antes do tatatatataravô do Santos Dumont nascer e vocês ainda reclamam.”

E a multidão, enfurecida, retruca: “Que você está pensando que é, o Narciso?! Ícaro, confesse: Você foi estúpido. E olha que seu pai lhe avisou! Foi afoito demais, superestimou não só você, como também suas asas.”

Ícaro, impaciente, diria: “Ah, calem-se. Queria ver vocês no meu lugar. Queria ver vocês realizando um sonho que pertencia não só a si, mas à humanidade. Queria ver se vocês não iriam querer viver um dos momentos mais incríveis da história da melhor forma possível. Se morri ou não, é consequência. Morri tranquilo, ao contrário de muitos de vocês.”

E eles insistem em contradizê-lo: “Como é, Ícaro? No desespero de ver-se morrendo pela imprudência, você diz que morreu tranquilo?!”

Ícaro já abriria as asas de tanta agonia de ter que dar mais explicações: “Morri tranquilo com meu espírito, seus tolos. Morri somente após ter realizado meu sonho. Morri vendo o mar da Grécia e sendo beijado por ninfas. Morri depois de ter chegado, em vida, o mais próximo de Zeus. Morri como a Lenda de uma Era.”

E todos abaixam as orelhas. E todos entendem que de nada adianta ter asas para voar baixo. E todos entendem que “o máximo que fazemos de nós mesmos é o mínimo que fazemos à humanidade”. E todos entendem que muitos ali não morreriam como Ícaro, e se algum morresse como ele poderia ser incompreendido como ele.

Ícaro morreu. Feliz.

Mali Melo esteve aqui.

P.S.: Voltei, é. Vocês vão ter que me engolir.


Beirut - Vagabond